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A história do vira-lata no Brasil – parte 4 de 4

Com esse conjunto de excelências, é normal que, como superlativo de beleza, utilizemos, em português, a expressão: “Bonito pra cachorro!” Da mesma forma, um prato delicioso é “Bom pra cachorro!” Para elogiar a excepcional competência ou o bom desempenho de alguém, dizemos “O cara é o cão!” E a fidelidade a toda prova é descrita como “lealdade canina”.

Atores históricos na história do vira-lata

Os vira-latas desembarcaram com os portugueses, participaram das entradas e bandeiras, testemunharam o grito do Ipiranga às margens plácidas, a proclamação da República e estiveram presentes nas diversas expedições do marechal Rondon e dos irmãos Villas Bôas. Há uns 15 anos, ouvi, emocionado, em uma roda de jornalistas, uma lição de patriotismo relatada pelo grande indigenista Orlando Villas Bôas como quem conta um causo. E vou narrá-la, do jeito que eu me alembro.

Orlando estava numa de suas heroicas expedições pelo Brasil desconhecido, sem contato com a civilização há muito tempo. Um dia, consultando seu diário, realizou que era 7 de setembro. Não teve dúvida. Mandou improvisar um mastro com um tronco de paxiúba. Reuniu todos os seus homens e, em ordem-unida, hastearam a bandeira brasileira e cantaram o Hino Nacional lá no coração da selva. Uma manifestação cívica, sem nenhuma outra testemunha senão a natureza naquele fim de mundo. A emoção foi geral. Terminada a comemoração patriótica, o chefe de seus mateiros, um rude e experimentado sertanejo, aproximou-se. Com jeitinho, quase confidente, puxou o sertanista de lado e comentou: “Bonita cerimônia, hein, doutor Orlando?” “Pois é”, respondeu o sertanista.

“Que mal lhe pergunte…”, prosseguiu o sertanejo, curioso. “Qual foi mesmo a razão dessa homenage toda?” “Ora! A independência!”, respondeu Orlando. “Ah! Ela merece, merece mesmo.” “Como assim?” “A Pendência!” “Pendência?!”, questionou o sertanista, intrigado.

Foi quando ouviu do mateiro: “É, ela memo. Cachorra boa pra paca como a Pendência nunca mais nóis tivemo, depois que aquela onça matô a coitada. E eu que já quase nem me alembrava do dia dessa tragédia…”

E você? O que achou da história do nobre vira-lata no Brasil? Deixe seu comentário! Queremos saber sua opinião e seus “causos”.

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Fonte: National Geographic Brasil – Edição 120/Março de 2010
Vira-lata brasileiro

A história do vira-lata no Brasil – parte 2 de 4

A introdução do cachorro pelos portugueses, sobretudo pelas mãos dos jesuítas, inaugurou nova era de sono tranquilo para os índios brasileiros. Em caso de aproximação de guerreiros inimigos, de dia ou de noite, os cachorros davam sinal e até atacavam os potenciais agressores. O cachorro foi integrado nas tribos como o primeiro mamífero doméstico – e continua sendo o mais extraordinário deles, capaz de seguir os passos do indígena, obedecer a suas ordens e cumprir tarefas diversas. Essa intimidade é tamanha que ainda hoje é comum observar índias amamentarem cães em seus seios ou prepará-los assados como alimento.

Como no caso dos primeiros grupos humanos, só tempos depois os índios descobriram a capacidade de caça dos cachorros. Foi uma revolução em suas vidas. A eficiência cinegética dos bichos, sozinhos ou em alcateia, como no caso dos lobos, introduziu mudanças nas técnicas de caça indígenas e até nos ritos relativos à captura da temida onça, por exemplo, antes normalmente atraída para armadilhas cavadas no solo, como indicam relatos dos jesuítas. A capacidade do cachorro de farejar, perseguir e acuar as onças no alto das árvores trouxe nova realidade às aldeias. Conforme o dito popular, nenhum índio se sentia mais num mato sem cachorro. E o sucesso reprodutivo dos cães garantiu rápida expansão de sua presença entre as tribos. Logo os caninos chegaram às aldeias mais remotas no interior, cujo contato com os brancos e suas tecnologias só ocorreria séculos mais tarde.

Símbolo e função

Os cães são naturalmente prolíficos. Cada ninhada tem, em média, de seis a oito filhotes. São fáceis de reproduzir. Os cios são frequentes. As fêmeas aceitam muitos machos. Às vezes, uma ninhada tem filhos de vários pais. E o intervalo entre partos é pequeno, o que permite à fêmea parir duas vezes por ano. Qualquer criador sabe: o tempo de geração curto e os filhotes numerosos são os ingredientes básicos de uma seleção genética animal rápida e eficiente. Há séculos, os seres humanos selecionam e aperfeiçoam raças de cachorro capazes de cumprir os mais diversos papéis e funções sociais. As raças são também símbolos de status, beleza, segurança, riqueza, força.

É curioso, mas um trabalho de seleção bastante parecido também foi feito pelos cachorros, sem que os seres humanos percebessem. Foi assim na Babilônia, nas cidades gregas e no Império Romano. Foi assim no Brasil, é claro. Nas ruas e nos subúrbios das metrópoles, nas fazendas e nos pequenos sítios, nas margens dos rios amazônicos ou no meio da caatinga, nas favelas e nos lixões. No caso dos vira-latas, as condições ambientais e as leis de Darwin selecionaram o melhor sucesso reprodutivo e adaptativo.

O vira-lata brasileiro é um cão autônomo, de grande inteligência e com enorme capacidade de conformação. Seus formato e tamanho são médios. Sua pelagem é curta e de cores ajustadas às condições ambientais, variando do negro ao bege-claro. Correm, nadam, sabem dissimular e têm todos os sentidos aguçados e bastante equilibrados. Muitas pessoas certamente ficariam na dúvida em identificar o nome de certa raça de cachorro com pedigree, mas poucos hesitariam em reconhecer um vira-lata, um rasga-saco, um pé-duro ou um, na linguagem formal dos veterinários, SRD (ou sem raça definida).

O SRD tolera e resiste a doenças e enfrenta sozinho condições ambientais adversas nas quais outros cães não teriam nenhuma chance de sobrevivência, seja no meio do mato, seja na área rural ou mesmo nos grandes centros urbanos. Oposto aos cachorros de raça, especialistas por natureza, o vira-lata é antes de tudo um generalista. Seu talento, seu conhecimento e seu interesse se estendem a vários “campos”, não se confinando em nenhum setor, como seus parentes com pedigree. Ele está geneticamente equipado para lidar com diversas situações, impostas pela natureza ou pelos seres humanos.

Uma coleção de acasos e oportunidades deu origem e moldou o vira-lata brasileiro. Ele segue evoluindo enquanto, no caso dos cães de raça, o esforço dos seres humanos é garantir a não evolução, a manutenção das características da raça e sua imutabilidade. Nesse processo, o animal vira-lata foi bem mais proativo que o ser humano. Na história de introdução e multiplicação de cachorros Brasil afora, o cão foi mais sujeito que objeto. Ele sentia o cio das fêmeas. Ele fugia para encontrá-las, viver suas aventuras. Pouco exigente em termos de alimento e abrigo, ele fez sua vida nas fazendas, nas cidades, nos vilarejos, acompanhando boiadas ou bandeiras, sítios e residências, saltando de canoa em canoa, de vagão em vagão, de circo em circo, seguindo andarilhos e romeiros ou caminhando solitário pelas trilhas e estradas, empreendendo viagens aventureiras e amorosas pelas terras brasileiras.

Olhos nos olhos

É necessário enorme treinamento para um chimpanzé aprender o significado de uma ordem ou de dois gestos humanos. Mas um cachorro é capaz de entender mais de 100 palavras e identificar pelo nome até 200 objetos. No Pantanal, nos sertões e nas montanhas de Minas Gerais, os cães pastores atendem a apitos, assobios, gritos, palavras e gestos, mesmo a grandes distâncias, realizando com precisão suas tarefas entre os rebanhos de bovinos, ovinos e caprinos. Da mesma forma, na zona rural, os vira-latas aprendem e colaboram nas diversas técnicas de caça empregadas no caso de onças, tatus, pacas, perdizes, jacus ou no que seja. A razão é simples: há milhares de anos o cachorro tem sido selecionado para nos entender, nos ajudar, cumprir nossas ordens e atender a nossos desejos.

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Fonte: National Geographic Brasil – Edição 120/Março de 2010
Vira-lata brasileiro

A história do vira-lata no Brasil – parte 1 de 4

Um velho companheiro

Sem raça definida o cão vira-lata no Brasil é autônomo, simpático, inteligente e versátil

Durante centenas de milhares de anos, o sono dos seres humanos foi leve e conturbado. Animais selvagens, predadores, grupos inimigos e ameaças de todo tipo impediam qualquer pessoa de dormir profundamente. Era preciso estar vigilante. Nossas noites começaram a ser tranquilas graças ao cachorro. A domesticação progressiva dos cães, com sua excepcional capacidade de detectar intrusos pelo ruído e pelo olfato, latindo e dando sinal nas proximidades do acampamento humano, foi uma enorme mudança na vida cotidiana. Comparável à descoberta do fogo.

A habilidade de fazer fogo foi uma das maiores conquistas tecnológicas da humanidade. Permitiu o aquecimento, a iluminação; trouxe conforto e novas técnicas, como o cozimento dos alimentos, a cerâmica, a metalurgia e tantos outros avanços. A domesticação do cachorro foi, talvez, o segundo de nossos maiores êxitos. Hoje o cão é encontrado em todo o mundo como animal doméstico. Impossível, em nossos dias, uma sociedade humana sem fogo e sem cachorro.

O cão é um mamífero carnívoro da família dos canídeos. Seu nome científico é Canis familiaris, e a espécie descende de populações selvagens do lobo eurasiático (Canis lupus). Todo o cão, independentemente de raça, é descendente longínquo dos lobos selvagens e primo da raposa. O menor dos cachorros, como esses que algumas senhoras levam dentro da bolsa, é descendente do lobo. Durante muito tempo acreditou-se que o homem domesticara o lobo, recuperando e criando seus filhotes. Hoje as pesquisas indicam quase o contrário. Foi o cachorro quem, de certa forma, domesticou os seres humanos, acompanhando-os de longe, persistindo, convencendo-os de sua utilidade e colocando-os a seu serviço.

Um pouco como as hienas fazem com os leões e outros predadores, determinados tipos de lobo seguiam os deslocamentos humanos a distância. Sempre prontos a recuperar resíduos alimentares, como ossos, ligamentos e restos com um pouco de gordura e carne. Nômades, os caçadores-coletores primitivos eram comedores de carniça, assim como os lobos. Com o tempo, os seres humanos também seguiam e observavam os mesmos lobos para detectar uma presa ou carniça. Para esses animais, era um ótimo negócio compartilhar uma carniça ou caça com os seres humanos, que apresentavam armas, cada vez mais sofisticadas, para obtê-la e defendê-la de outros predadores.

A competência em dar sinal em caso da chegada de intrusos permitiu e garantiu a permanência desses animais dos acampamentos humanos. Uma interdependência estava criada. Trouxemos os filhotes para dentro de nossas cavernas e cabanas. E imaginamos o simétrico: mitos e histórias em que lobos amamentam, por exemplo, os fundadores de Roma ou Mogli, o menino-lobo (sem falar no lobisomem).

Com essa proximidade, começamos a compartilhar comida e doenças, ócio e trabalho, inimigos e ameaças. Os seres humanos puderam, enfim, dormir. Relaxar. Entrar num estágio de sono profundo, confiando sua noite e seus sonhos ao aguçado olfato e à audição superior dos companheiros cachorros. Faz pouco tempo: menos de 20 mil anos de bons sonhos contra centenas de milhares de anos de pesadelo.

Cachorro de índio

Ao contrário do que muitos imaginam, no século 16, não foram facões, machados ou anzóis as tecnologias europeias mais desejadas e adotadas pelos indígenas brasileiros – mas o cachorro. A razão inicial da ampla difusão e do sucesso dessa tecnologia europeia com os índios do Brasil foi seu uso como defesa. Os cães foram mais úteis aos indígenas que o irreprodutível metal dos europeus.

Na chegada dos portugueses ao litoral brasileiro, a expansão territorial dos tupis ainda não estava consolidada, apesar do desaparecimento dos sambaquieiros e outros povos. As guerras entre tribos e aldeias eram permanentes e marcadas pela exoantropofagia. Mulheres e crianças eram as maiores vítimas: fáceis de capturar, imobilizar e transportar, mais indefesas que os guerreiros. Buscar água ou brincar longe das aldeias era um risco enorme. A vida concreta das mulheres e crianças nativas, naquela época, era muito distante da mítica visão paradisíaca apresentada em alguns livros de história.

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Fonte: National Geographic Brasil – Edição 120/Março de 2010